segunda-feira, 2 de julho de 2007

REPORTAGEM

Exemplos no estrangeiro suscitam preocupação
Liberalização das farmácias prejudica doentes


A decisão anunciada recentemente pelo Governo de rever a actual regulamentação do sector da Farmácia e do Medicamento, liberalizando a propriedade da primeira e democratizando o acesso de toda a população aos segundos, visando diminuir as despesas com os fármacos, é penalizadora da qualidade dos serviços prestados e tem, à luz de vários estudos internacionais, exactamente o efeito contrário.

Um relatório do Centro de Estudos e Investigação em Saúde da Universidade de Coimbra divulgado recentemente atesta que “tentar diminuir a despesa com base na concorrência pelo preço dos medicamentos provou ser um instrumento favorecedor do crescimento da própria despesa”, que necessariamente não conduz a um menor encargo para os doentes, visto que a prescrição de fármacos compete em exclusivo aos médicos, e a sua disponibilização no mercado à indústria, únicas entidades com reais poderes de decisão nesta matéria. O estudo, apresentado publicamente pela Ordem dos Farmacêuticos e entretanto enviado ao Ministério da Saúde e à Autoridade da Concorrência, as duas entidades em cujos pareceres o Governo se baseou para alavancar o processo de revisão da regulamentação do sector, refere ainda que a análise casuística dos esquemas que vigoram noutros países levou à conclusão de que “a competição pelo preço tende a gerar más práticas profissionais, aumentando os riscos para os doentes e para as sociedades”.
Um dos casos mais evidentes do desajuste da medida teve lugar na Noruega, onde até 2001 era vigente um modelo de farmácia regulado, com reserva de propriedade das farmácias para os farmacêuticos e com a abertura de novos estabelecimentos de dispensa de medicamentos a sofrer fortes constrangimentos por parte da tutela. Naquele ano, porém, o governo norueguês liberalizou a propriedade das farmácias e autorizou a venda de medicamentos fora daqueles espaços. Cinco anos depois, em 2006, o sector farmacêutico na Noruega observava um cenário radicalmente diverso: apenas 13 de um total de 347 farmácias mantinham a sua independência, ao mesmo tempo que três cadeias multinacionais de distribuição aglomeravam todas as outras (e ainda as 188 entretanto abertas, todas nas principais cidades do país), dominando 90 por cento do mercado.
O impacto do processo no preço dos medicamentos foi, de acordo com um estudo publicado em 2003, precisamente o contrário do pretendido e anunciado: os nove medicamentos não sujeitos a receita médica mais vendidos na Noruega sofreram aumentos entre os 10 e os 45 por cento, contra uma subida generalizada de preços no sector que não ultrapassou os oito pontos percentuais. Enquanto na vizinha Finlândia – onde é obrigatório ser farmacêutico para ser dono de uma farmácia e não é permitido ter mais do que uma – as farmácias se tornaram espaços de saúde comunitários, conquistando a confiança dos cidadãos, na Noruega deu-se a monopolização e oligopolização do sector.
Depois da liberalização, que levou a uma maior concentração de estabelecimentos de dispensa de medicamentos nas zonas mais populosas, também as equipas das farmácias baixaram a sua competência técnica e científica, com uma diminuição do número médio de funcionários de 15,5 para 11,5 profissionais. Em 2000 a média de farmacêuticos por cada farmácia norueguesa era de 2,2, mas em 2005 tinha já baixado para 1,8 profissionais. Os medicamentos genéricos, apontados antes pela tutela como área a privilegiar, não encontraram eco no desempenho das empresas detentoras do mercado, a quem interessou mais potenciar as vendas dos fármacos das suas marcas.

Exemplos europeus
No Brasil, por seu turno, a liberalização da propriedade das farmácias espoletou a anarquia no sector, tornando comum a prática de descontos na venda de produtos farmacêuticos e a celebração de campanhas do tipo «pague dois, leve três», tendo-se instalado a corrupção, com a oferta de incentivos pecuniários à recomendação da prescrição de determinados medicamentos aos doentes, que podem comprá-los em supermercados e drogarias, onde se encontram expostos ao lado de bebidas alcoólicas, refrigerantes, vassouras ou peças de vestuário e alimentação, e são vendidos com a mesma ligeireza.
Exemplos diversos surgem da Finlândia, país em que a propriedade e a venda de fármacos continuam a ser prerrogativas exclusivas dos farmacêuticos, ou do Reino Unido, onde o parlamento manifestou a sua discordância face à análise puramente económica que os serviços de concorrência pretendiam privilegiar, recusando desta forma comprometer a qualidade do serviço público que é prestado pelas farmácias britânicas. Também em Espanha as autoridades refutaram a recomendação feita pela Comissão Europeia no sentido de alterar o esquema de funcionamento das farmácias e as regras relativas à sua propriedade.
Em Portugal, como na Finlândia, o grau de cobertura territorial do sector é bastante satisfatório e harmonioso, com um rácio aproximado de uma farmácia por cada 3600 cidadãos. Segundo diversos estudos recentes, os portugueses têm das suas farmácias uma visão muito positiva, elegendo-as como as estruturas de saúde mais bem vistas, com uma taxa de satisfação de 91,8 por cento e uma avaliação “boa” do trabalho dos farmacêuticos em 85 por cento dos casos. São números e exemplos a ter em conta numa altura em que é intenção do Governo legislar sobre a liberalização do sector no prazo máximo de seis meses…

Carla Teixeira
Fonte: Revistas «Farmácia Saúde», Ordem dos Farmacêuticos, Universidade de Coimbra

1 comentário:

ptcp disse...

Excelente artigo Carla. Desde o início que tem iniciativas de grande valor, esta foi uma das melhores.