sexta-feira, 24 de agosto de 2007

REPORTAGEM

Publicidade a medicamentos: um universo muito específico
“O mais vigiado dos produtos de consumo”


A norte-americana Food and Drug Administration, que regula o sector do medicamento e dos produtos de saúde nos Estados Unidos, anunciou há dias a intenção de monitorizar e analisar o impacto dos anúncios publicitários a medicamentos transmitidos diariamente nas estações de televisão locais. Na reacção a essa notícia o farmacia.com.pt foi saber qual a realidade deste tipo de publicidade em Portugal e que grandes preocupações têm os especialistas. Beja Santos, assessor principal do Instituto do Consumidor e autor do livro «Este consumo que nos consome», responde.

Definida como “qualquer forma de comunicação, informação ou incentivo que, directa ou indirectamente, promova a prescrição, dispensa, venda, aquisição ou consumo” de certo medicamento, a publicidade àquele tipo de produtos viu o seu quadro alterado em 2001, quando decorria o processo de aprovação do Código Comunitário relativo a fármacos de uso humano. Nessa altura a Comissão Europeia decidiu autorizar a comunicação directa entre laboratórios e doentes, gerando uma onda de contestação sem precedentes. Para Beja Santos, a definição aprovada por Bruxelas encerra “um equívoco”, porque “mistura no mesmo conceito a comunicação publicitária, a comunicação comercial destinada aos profissionais de saúde e as mensagens direccionadas para públicos diferenciados. Está-se a pedir o impossível a esta publicidade”, explica o assessor principal do Instituto do Consumidor, que foi também vice-presidente do Conselho Consultivo de Consumidores e director da Associação Europeia de Consumidores.
No que diz respeito especificamente à publicidade a medicamentos não prescritos pelo médico, Beja Santos considera que estará ainda por demonstrar a sua utilidade para a saúde pública ou para uma melhor informação dos consumidores/doentes. É imperativo, na sua opinião, “proceder a um estudo rigoroso e independente que permita avaliar os reais benefícios desta comunicação, conhecer também os seus efeitos danosos e actuar em conformidade”, designadamente através da consulta de peritos em comunicação, a fim de saber se é desejável continuar a manter no mesmo conceito e âmbito formas de comunicação como a publicidade e o marketing farmacêutico, e tentando aferir quais os mecanismos mais interessantes para proceder à sua demarcação. Outra falha grave do nosso ordenamento jurídico nesta matéria consiste, avisa o autor de «Este consumo que nos consome», na não existência de um enquadramento legal que permita a proibição da publicidade a fármacos não autorizados, embora a legislação europeia preveja uma interdição para os anúncios a medicamentos a que ainda não tenha sido concedida uma Autorização de Introdução no Mercado.
Tal como o Parlamento Europeu argumentou já, ao chumbar a possibilidade de contacto directo entre laboratórios e doentes – “uma porta aberta para a publicidade directa, que agravaria em espiral os consumos e o número de doentes incorrectamente medicados –, Beja Santos considera essencial que haja fontes de “informação precisa, compreensível e fiável sobre tratamentos e usos dos medicamentos”, sendo desejável o fomento de estruturas de informação independentes que contem com a colaboração de profissionais de saúde, laboratórios e representantes dos consumidores e doentes, trabalhando em cooperação com a Autoridade Nacional do Medicamento”. Porque “o medicamento não é um bem de consumo como os outros”, o seu consumo “pode tornar-se perigoso para o consumidor, quer seja pela sua nocividade intrínseca, quer pela sua má utilização”. Por isso, e porque nenhum outro produto é tão mediático (por fomentar terror e esperança), os fármacos têm de ser “espartilhados por tantas medidas de autorização, controlo e acompanhamento, pautadas por grande rigor e severidade”.

Papel do farmacêutico
Nos folhetos informativos destinados aos doentes, e que Beja Santos considera terem sofrido uma importante melhoria em Portugal ao longo dos últimos anos, importa haver dados actualizados e explicados de forma acessível sobre as características e correctas aplicações dos medicamentos, os seus potenciais efeitos secundários adversos, o que é e como se manifesta uma eventual intolerância, o que fazer caso isso aconteça, definir a alergia que um determinado produto possa causar, o que é a forma farmacêutica, como o mesmo medicamento pode actuar de formas diversas em pessoas diferentes (pelo que não será indicada a automedicação com recurso a fármacos de um amigo ou familiar), e o que é a farmacovigilância, tendo em conta que o uso de medicamentos pressupõe sempre algum tipo de riscos, nomeadamente em termos de interacções com alimentos ou outros compostos químicos.
Beja Santos defende que “o medicamento é o mais vigiado dos bens de consumo”, mas avisa que “não há medicamentos inofensivos”, e nessa medida salienta a importância do diálogo entre o doente e o farmacêutico, devendo este tentar sempre co-responsabilizar o primeiro em matéria de utilização racional dos fármacos e de combate à tendência para a automedicação, que encerra riscos concretos, como a má avaliação dos sintomas e a incorrecta dosagem dos medicamentos. Questões em que a actuação do profissional de Farmácia deverá ser tida como relevante, devendo fomentar-se sempre o diálogo em tom explicativo. Conselhos de um especialista para evitar as consequências nefastas de um fenómeno crescente, em Portugal e no mundo.

Carla Teixeira
Fonte: «Este consumo que nos consome» (Editora Campo das Letras)

1 comentário:

Rui Borges disse...

Excelente artigo Carla. Talvez um dos melhores dado o conteúdo e o contexto em que é publicado.

A questão da publicidade a medicamentos é uma questão polémica que se arrasta há muitos anos. A pressão da indústria farmacêutica é grande, diria mesmo enorme, para que a comunicação indústria-consumidor possa ser directa, principalmente desde que isso se passa nos EUA e na Nova Zelândia.

A Europa tem-se mantido imune a essas pressões mas agora que novos mercados importantes emergem, como o chinês e o indiano, o exemplo europeu ganha uma importância maior. A dimensão do mercado indiano está descrita no artigo da Isabel a ser publicado amanhã, sábado 25 de Agosto.

É de realçar, e incentivar nos restantes jornalistas, a continuidade dos temas relevantes. A 24/08 o Pedro Santos escreve "FDA estuda impacto dos anúncios de medicamentos", artigo que é exemplarmente continuado pela Carla com este artigo."

Pedro Capão